Era pequena,
tinha aprendido há pouco tempo os mistérios das letras, já sabia uni-las como
num desenho que deixa sua marca, já sabia decifrá-la imaginando figuras que se
expandiam em sua imaginação, figuras grandes e pequenas, figuras coloridas e
sem cor. Não sabia quem era, mas já sabia o que queria fazer: queria manusear a
máquina de escrever do seu tio, guardada no fundo do armário embutido, lá em
cima, onde era seu lugar, vivia em uma bolsa que mais parecia uma mala. Ela
morava numa mala de viagem, e ela morava na minha casa. Eu queria usá-la. Queria
gastar as pontas dos dedos forçando cada letra, à medida que o barulho ia
aumentando até tocar uma sineta estridente, era o fim da linha, momento de
pular pra próxima estrada e retornar a viagem. Viagem de poucos rastros, e
muitas cicatrizes, a tinta já estava gasta, ressecada pelo desuso. Manusear a máquina
era de certa forma crescer uns vinte anos, era ser meu tio que fora o único da
família a concluir o curso de datilografia, era ser bamba, era ser gente que
fala com gente, gente que quando vai embora a gente sente, queria ser meu tio,
ele não sabia usar só a máquina, ele sabia usar a voz, e sabia usar o pandeiro
também, ele contava histórias como ninguém, e sabia fazer a todos ri, na
verdade ele sabia usar o coração.
Mas usar o coração era proibido.
A filha da heroína[1]
fora criada para usar os números, a exatidão sem espaço para o sentir, a
exatidão sem espaço para questionar o que se é, uma vez que nunca se fora para
ser.
Mas nem sempre foi assim. Nem sempre sua mãe fora
heroína, na verdade ela fora criada para ser tudo aquilo que sua mãe não pudera
ser.
Mas tudo que
sua mãe era, ela não queria.