quarta-feira, 23 de setembro de 2020

Meio



O espaço da casa era infinitamente maior que a sinto hoje. A casa da minha avó. Minha casa, pensei por muito tempo. É uma casa de muitas gerações, casa que era terreno, que virou casa de meus bisavós, casa da minha avó e hoje mora minha mãe e filhos e netos do meio tio. Casa que ja abrigou muitos, e que já abrigou poucos. Casa com histórias, casa testemunha dos ausentes.Casa que conheço  cada detalhe, cada pedaço, cada marca no piso, cada sensação dos fragmentos daquele lugar. Casa que tinha uma vista longínqua para o horizonte em seus fundos. Casa que ora era liberdade de pisar na terra e deitar no chão, ora que era prisão, quando não se podia misturar as outras crianças que corriam na rua. A rua era um lugar não cotidiano.Eu ia pra rua muito raramente.Na negociação dessa liberdade, a casa se moldava as minhas urgências. Minha avó, quando não podia me acompanhar na rua,sabia da minha tristeza.E sábia que era, logo idealizou um caixote feite de tijolos e cimento próximo ao muro.Para que eu pudesse subir quando quisesse fazer parte da rua. Ali eu subia e podia observar a rua, olhar a rua, falar com amigos, ampliar os horizontes da casa. Era um caixote com uma unica utilidade:possibilitar a visão da rua. Minha mãe não entendia a construção daquele pedaço de tijolo ocupando o quintal. Ninguém entendia.So nós, eu e ela. E todos os dias, inúmeras vezes subia ali.E via. Via a rua cheia de gente. Vazia. As vezes subia ali e imaginava que estava num palco, cantava para uma platéia invisivel na extensão do quintal. As vezes olhava pra rua.Era meu lugar, na membrana da casa. Não era casa, não  era rua. Era meio. 

terça-feira, 15 de setembro de 2020

Reexistir

 Sua palavra era resistência.

Seguia intuitivamente essa direção, era preciso resistir a miséria, a dor, ao racismo, a gordofobia, ao preconceito, as instituições, ao sistema do capital, ao julgamento dos outros, ao julgamento de si, o caminho, a morte e a vida.Resisitir era sinônimo de dignidade. E dignidade era o nome daquilo que foi construído na busca pelo lugar de ser. Na busca utópica de não precisar ser além do que se é. Mas o que se era afinal?
Era tudo aquilo que sabia ser e tudo aquilo que buscava descobrir. E sua busca era intensa,era uma inquietação na verdade da essência. Era experiência na linguagem da troca. Era alquimia interna e externa. Membrana dos mundos de dentro e de fora. A sobrevivência a solicitava inteira, mas tinha momentos em que se via em pedaços. Fragmentos na tentativa de diluir afetos, juntos somos mais fortes mas fragmentados somos muitos. Muitos por todos os cantos das habitações de si. Filha, esposa, mãe, professora, artista, conselheira, poeta, narradora, amante, amiga, historiadora. Algoz de si na permanência de seu relicário de redenção.Era preciso entender o percurso do nós. É preciso entender o percurso da dança da vida. E cantava e dançava e sorria nas brechas do eu. Eu que ansiava por respostas. Eu que vivia por construir perguntas.Das perguntas que gritavam mais alto era dificil escolher uma.Uma que desatasse o nó mestre de sua vida.Que respondesse a pergunta chave de seu enigma.Que desdobrasse como flores de lótus o peso de existir.Porque existir tem um peso, um peso para além do corpo, da matéria, dos ossos. Um peso que atravessa as memórias, pelas nuvens esquecidas do amadurecimento e se reencontram nas narrativas do silêncio, revivendo na pele a inconsciencia de ser.
E era. Era tudo que desconhecia. Era luz e sombra na criança que não abandonara. Justo ela que fora abandonada inúmeras vezes, não poderia ser abandonada por si. Era ser cruel demais, e não sabia lidar com esses sentimentos.A criança seguia seu caminho, ora solitário, ora acompanhada, ora alimentada, ora esquecida. Mas nunca ultrapassada.Ela estava ali, resistindo a tudo, num horizonte de espera, num passado atemporal, no fragmento do nós, no silêncio da sombra, na dor da existência, no perdão que tarda. Ali, onde nunca saíra, obediente em sua essência de subverter o tempo. Seu tempo se estendia a espera de outro tempo. E enquanto esperava se fazia presente. Era agente no percurso desde sempre, era protagonista de relações,era quem se recolhia e não tinha hora de voltar. Era amiga do sol e da sombra juiz. Era no fundo talvez infeliz. Sua morada, ora fragmentada ora inteira, não se fazia encaixar. Seu tempo ja tinha passado e mesmo assim resistia na luta pelo controle em não aceitar. Dialogava como adulta e as vezes convencia na arte de ocultar. Mas era a criança ferida que só queria salvar. Salvar a si na resistência do tempo que escorre pelos dedos, seus pés gordinhos insistiam em fincar nas terras de si e dali não sair do lugar.
O que falar pra essa pequena que não para de chorar?
Escuta minha filha, vem cá. É preciso ouvir o tempo e com ele se encontrar.
Não adianta, fazer birra, se esgotar. Sofrer, bater pernas e chorar. A vida sempre vai passar, o tempo não podemos carregar: esperando pelo abraço na hora certa, pelo aconchego, pelo aplauso, pela palavra, pela comunhão, pela proteção, pela escuta, pela luz, pela exclusividade, pela intensidade da presenca compartilhada no transbordamento do nós. Não. Não precisa resistir. Tardar por reexistir.Não é tempo de fingir que ainda espera por um passado de partilha e comunhão.Não, irmão, o que nos resta é só a gratidão. De olhar a existência do sim e do não, no percurso que nos faz aquecer o coração. Coração de carne e canção.Na poesia de continuarmos mãos com mãos. Na alquimia de integrar, olhar pra você e falar; Vem, no caminho eu te mostro o instante.

Poeta

 O arco é o meio

Ar rarefeito de sopro
Sopro de vida; sagrado.

O arco é o sustento invisível.
O nós em estado de liberdade.
Liberdade construída no corpo,
cólera na origem da falta.
Falta que movimenta rios,
que muda cursos e se faz
leito que desagua linguagem.

O leito da linguagem é o milagre da vida

Palavra habitante dos rios em curso
Água que irriga, água que negocia
Com a ira e dela faz morada
Mora no interstício da gente
E quando cala
É do leito colera,
estado de origem matriz,
que experiencia habitar no invisível
Essencial do chamar a ser

De novo inteiro, em condição primeira
De limite,de fio d'água, de irromper
Que irriga nascente da palavra
Que se mescla a vida,
Não, que é própria vida.

domingo, 6 de setembro de 2020

Mito de origem

 Numa comunidade distante, uma menina morava numa caverna com sua família. Esta desde muito nova olhava as plantas, os animais, a textura das paredes, o horizonte limitado da caverna, as montanhas ao longe, o povoado, a imensidão que ela imaginava lá fora pelos olhos zelosos de sua mãe.Sua mãe era orgulhosa da formosura de sua primogênita e cuidadosa com suas práticas no cotidiano doméstico. Sua preocupação a fazia cuidar minuciosamente sobre o que era prudente para sua filha.Sua filha era tudo aquilo que ela não fora: preservada. Preservar era seu maior ato de amor.E sua filha respondia o afeto com obediência. Ficava na área externa limitada, cuidava de sua aparência, organizava as coisas internas, não realizava serviços pesados, era prendada, valorizava sua caverna e jamais, jamais ousava ir para a montanha próxima ao mar. 


Rezava a lenda local, que esse monte guardava um vulcão adormecido, que a qualquer momento, ao entrar em contato com as pessoas, poderia voltar a entrar em erupção. Como castigo aos que ali estivera, os acometeriam com a impossibilidade do florescimento, tendo suas lavas entrando em contato com tudo a sua volta.Sua mãe a alertava com essa história desde muito cedo.E obediente que era, a menina sabia que jamais iria a esse lugar.

O tempo passou, e um dia, pela primeira vez a menina ouvira uma voz diferente daquela habituada desde pequena.Era uma voz que tinha movimento, cor, música, dança, poesia. Era uma voz que diferente daquela que conhecia, a impulsionava a sair da caverna, a olhar o mundo com os olhos que por ora sentiam dor, pois nunca tinham sidos usados.A impulsionava a ouvir outras histórias e a experimentar contar as histórias que ali nascia, a menina pela primeira vez era provocada a criar suas proprias narrativas.

Num dia, sem que sua mãe pudesse a advertir, a voz a conduziu até a montanha próxima ao mar. Sem perceber que ali estava, e encantada com o novo mundo que se mostrava a sua frente, quando percebera, o vulcão, aquele que sabia que jamais poderia conhecer, começara a dar indícios de vida. A erupção acontecerá exatamente da forma que ouvira nas histórias e sem acreditar, protagonizava junto com aquele que escolherá para ser livre. Aquele que era um misto de vida e morte.Aquele adormecia a menina e fazia despertar a mulher.Protagonizava com ele o despertar do vulcão. Nesse momento, estava ali: o medo da menina em seu conflito mulher, seu amor amaldiçoado pelas lavas do vulcão e uma dor por deixar de ser a filha que fora até então. Ela chorou profundamente por vários dias e várias noites, numa vigília intermitente do vulcão.Sem lugar para voltar, num incômodo nunca vivido.Da mistura de suas lágrimas, da chuva de raios e águas quentes, e das lavas do vulcão, a mulher deu a luz a uma pedra vulcânica. Pedra vulcânica que nascerá na terra árida ressecada.

Essa pedra era eu.
Que ficara ali, por algum tempo, seguindo o curso de sua mãe na caverna.Pedra impermeável, que não se deixava molhar, pedra imutavel, que não saia do lugar, pedra como sua vó-caverna. Avó que já dava indícios de cansaço ao ofício em preservar.E permitia contar as suas dores e alegrias,suas histórias e causos, a atenta menina pedra, alimentando-a com águas que nasciam tardiamente da fonte de sua caverna.A avó se dava conta da ineficácia da rigidez que até então tivera. Sua condição de caverna não controlou o fluxo da vida,não preservou aquela que mais amava, e não determinou os caminhos que achava que um dia poderia planejar.Ser rocha não garantia absolutamente nada.

E aos poucos permitia-se transbordar timidamente água da fonte de caverna ao narrar a menina suas histórias da infância na roça, as rezas de sua mãe, a vinda sozinha para o rio, o namoro em frente a praia do Russel , a vida movimentada da família. Era água que sorria para pedra.Não precisava acertar, só ser.E naquele momento aquele ser era tudo que a menina tinha.E era a única água que penetrava a menina, e a mudava, e a alimentava, numa irrigação intra-ósseo. O afeto era por ouvir. Por muito tempo a menina acreditou que sua cumplicidade com a avó, era a semelhança da matéria rochosa. Mas não.Sua cumplicidade se dava pelo encontro no tempo da transformação. Ambas eram cúmplices no exercício de transformar-se. Processo de caverna que vira fonte. E pedra que vira água.

Água-marinha, depois água do mar,água do mar do vulcão. E mesmo depois, sem a parceria da avó, a menina firmava-se água. Água quente das lavas do vulcão.Água que busca brechas.Água das profundezas do nós. Água que tenta recontar a história daquele lugar e de outros.Água que tenta contar a historia de si.Água nascida na terra seca.Água feita de afetos dos encontros daqui e porvir.Água que flui. Água que tenta mas não consegue fazer sua mãe florescer.Água que irriga o mundo, mas não irrigava partes rochosas de si pertencentes ao passado filha.Água que tenta irrigar a mãe.Água que não consegue irrigar a mãe. Água que não consegue tocar a mãe. Exceto em momentos, que esta, imersa nas memórias de dor , volta ao entorno do vulcão, senta e chora profundamente.