domingo, 11 de dezembro de 2022

Tempo presente



Há quem diga que tempo é dinheiro.
Há quem diga que tempo é remédio.
Hoje prefiro o tempo instante.
Agora santuário de memórias.
Agora na estrada da existência larga do que virá.
Mais precisamente agora do agora mesmo.
Imensidão de pés fincados no espaço de ser.
Sendo outros e o mesmo no jogo do tempo.

Porque o lugar do nós é o palco da linguagem.
No ar rarefeito de bugigangas que ofuscam o que se é.
Somos o vir a ser dos contatos permitidos.
Na coragem de transpor medida além do que se espera.

Mas como dialogar com o tempo e ainda assim caminhar levemente?

Como entender-se parte daquele que nós devora a cada minuto que passa?

Por que somos no meio.
Existimos plenamente na relação.
Somos membrana no fluxo do instante. Somos vida desatando nos de tudo tenha tido nos afetado.
Somos memória no emaranhado do medo de não sentir dor.

Mas a dor é premissa da vida.

Corpo que se estende,
na tarefa de resistir ao tempo.
Tempo de pausar e tempo de seguir.
Tempo de esperar e tempo de sentir.
Tempo de falar e tempo de ouvir.

Música na escala da existência,
harmonia de nossas vozes presas,
na garganta da expressão.
Somos canção,
que ocupa os espaços,
na intenção de tocar o outro.

Outro feito de mundo,
outro feito de nós,
outro feito de tempo.

Escuto a tua voz,
a medida que me entrego a dança da vida,
sempre outra na esteira da eternidade.
Somos verdade,
esperando o tempo de nascer,
mais uma vez.

quinta-feira, 8 de dezembro de 2022

Yin


 


Ela vem.
Na força de uma risada.
No recitar de uma palavra.
Na hora da largada.
No cansaço de chegada.
Num momento de decisão.

Ela vem.
Na mudança da lua.
Na minha história
e também na sua.
Na hora do choro seco.
Na tristeza e no desespero.
De tudo ter sido em vão.

Eu preciso de mim
Não tem origem
Não tem fim.

Meu tempo é hoje.
Na coragem dos afetos pungentes
Na cara lavada da gente
Na alma que pesa.
Na reza.
No desencontro do tempo
No vento.
Que sopra pra longe
Pela dança dos ciclos sem fim.

Na luta pra que ela seja sempre sua
Mulher que não recua
Quando a vida fala não e sim.
Luta pra que ela seja sempre sua
Mulher que não recua
Na batalha em ser dona de mim.

domingo, 28 de agosto de 2022

Poesia sem alcool


 

Meu bem, não chores,

hoje tem filme de Carlito

Meu bem, não chores

hoje tem poesia do Neruda.

Porque se alonga 
no alcance das estrelas
Se o sol,
nasce todos os dias 
dentro de ti?
 
Na festa do entre,
a alegria em estar.
Na festa do entre,
á medida certa da existência.

Entre rios há mar
Entre o tempo há instante.
Entre silêncios há palavras
Entre nós, infinito.

sábado, 23 de julho de 2022

Corpo Alma-Poesia adulta

 

Era corpo,
corpo que a maior parte do tempo cala, 
corpo que se resguarda dos afetos pungentes,
 que transformam vida,
 corpo que não permite ser corpo. 
Era mente.
Mente que cria desculpas.
 Mente que mente.
Por que se fora corpo
 seria transbordamento de alma pelos poros dos sentidos.
Mas também se comunicava,
 era desfiladeiro de si,
 busto que se dobra pra ver a altitude da queda,
pernas que se encostam,
pés que se alinham na iminência em cair,
dobrar-se diante do meio 
e desequilibrar nas fronteiras da gente.
Era fome de corpos que se mesclam no encontro das águas.
 Era carne que se comunica,
 carne que se conecta ao chão do coração.
Era paixão. 
Era a promessa do encontro,
 era o conto.
Conto de histórias e trocas, 
de comunidades vivas, 
de pés descalços nas areias quentes,
 era nudez da gente.


Mulher Oculta

 


Inserção no mundo.
Mundo fálico, mundo falido.
Objetificação na produção de tudo que há.
Distinção no descarte da imperfeição.

Quantos homens precisei ser para me tornar uma mulher?
Quantos homens precisei deixar se ser para descobrir-me mulher?

Descida da deusa
Heroína do caos
Vida em estado de intuição.
Disrupção, corpo, reconexão.

Nós somos e isso basta

quarta-feira, 20 de julho de 2022

Feminino



Os mares se revoltam.
Os mares se revoltam a medida que as páginas de nossos diários ascendem no ar.
Elas se encontram no tempo do infinito.
Elas ensaiam a dança da vida.

A mulher se levanta.
A mulher eleva-se as profundezas dos rios de si.
A mulher se ancora meio.
Ponte suspensa pelas vigas da imaginação.
Fogo da criação.
Paixão.

Lua que reflete sombras.
Cicatrizes que se curam pelas águas da gente.
Ela é outra, ela é a mesma.
É o encontro com o tempo.
É o vento.
A história do instante, errante.
Na liberdade em encontrar-se.
Mais uma vez. 

OBS: Desenho idealizado e realizado por Beatriz Luz(minha filha).
 

domingo, 15 de maio de 2022

Para viver o coração selvagem

 





Para viver o coração selvagem
É preciso uma dose de alegria
Cerveja com poesia
Olhar o outro com ousadia
E não se deixar embrutecer
Para viver o coração selvagem
E preciso ouvir os pássaros
E olhar as estrelas
Rasgar o coração
E remendar as memórias
Sem nada a perder
Para ouvir o coração selvagem
E preciso uma canção pra chamar de sua
É preciso gostar de casa
E também de rua
É preciso esquecer de esquecer
Para viver o coração selvagem
É preciso estar na prontidão
Do jogo da vida
Preso no instante mundo
No raso e também no fundo
Pra mim e pra você
Para viver o coração selvagem
E preciso ter pulmão de fumante
E olhar de poeta
E preciso não precisar falar a palavra certa
E perdoar- se sem entristecer
Para viver o coração selvagem
É prévio silenciar os dogmas
E exercitar a escrita
Não é preciso tá bem na fita
Nem ter conta no Instagram.
Para viver o coração selvagem
É preciso não ser preciso fazer nada.
Além de ser.



sexta-feira, 28 de janeiro de 2022

Máquina de escrever

 


Era pequena, tinha aprendido há pouco tempo os mistérios das letras, já sabia uni-las como num desenho que deixa sua marca, já sabia decifrá-la imaginando figuras que se expandiam em sua imaginação, figuras grandes e pequenas, figuras coloridas e sem cor. Não sabia quem era, mas já sabia o que queria fazer: queria manusear a máquina de escrever do seu tio, guardada no fundo do armário embutido, lá em cima, onde era seu lugar, vivia em uma bolsa que mais parecia uma mala. Ela morava numa mala de viagem, e ela morava na minha casa. Eu queria usá-la. Queria gastar as pontas dos dedos forçando cada letra, à medida que o barulho ia aumentando até tocar uma sineta estridente, era o fim da linha, momento de pular pra próxima estrada e retornar a viagem. Viagem de poucos rastros, e muitas cicatrizes, a tinta já estava gasta, ressecada pelo desuso. Manusear a máquina era de certa forma crescer uns vinte anos, era ser meu tio que fora o único da família a concluir o curso de datilografia, era ser bamba, era ser gente que fala com gente, gente que quando vai embora a gente sente, queria ser meu tio, ele não sabia usar só a máquina, ele sabia usar a voz, e sabia usar o pandeiro também, ele contava histórias como ninguém, e sabia fazer a todos ri, na verdade ele sabia usar o coração.

Mas usar o coração era proibido.

A filha da heroína[1] fora criada para usar os números, a exatidão sem espaço para o sentir, a exatidão sem espaço para questionar o que se é, uma vez que nunca se fora para ser.

Mas nem sempre foi assim. Nem sempre sua mãe fora heroína, na verdade ela fora criada para ser tudo aquilo que sua mãe não pudera ser.

 Mas tudo que sua mãe era, ela não queria.



[1] The Heroine Journey, Maureen Murdock