domingo, 6 de setembro de 2020

Mito de origem

 Numa comunidade distante, uma menina morava numa caverna com sua família. Esta desde muito nova olhava as plantas, os animais, a textura das paredes, o horizonte limitado da caverna, as montanhas ao longe, o povoado, a imensidão que ela imaginava lá fora pelos olhos zelosos de sua mãe.Sua mãe era orgulhosa da formosura de sua primogênita e cuidadosa com suas práticas no cotidiano doméstico. Sua preocupação a fazia cuidar minuciosamente sobre o que era prudente para sua filha.Sua filha era tudo aquilo que ela não fora: preservada. Preservar era seu maior ato de amor.E sua filha respondia o afeto com obediência. Ficava na área externa limitada, cuidava de sua aparência, organizava as coisas internas, não realizava serviços pesados, era prendada, valorizava sua caverna e jamais, jamais ousava ir para a montanha próxima ao mar. 


Rezava a lenda local, que esse monte guardava um vulcão adormecido, que a qualquer momento, ao entrar em contato com as pessoas, poderia voltar a entrar em erupção. Como castigo aos que ali estivera, os acometeriam com a impossibilidade do florescimento, tendo suas lavas entrando em contato com tudo a sua volta.Sua mãe a alertava com essa história desde muito cedo.E obediente que era, a menina sabia que jamais iria a esse lugar.

O tempo passou, e um dia, pela primeira vez a menina ouvira uma voz diferente daquela habituada desde pequena.Era uma voz que tinha movimento, cor, música, dança, poesia. Era uma voz que diferente daquela que conhecia, a impulsionava a sair da caverna, a olhar o mundo com os olhos que por ora sentiam dor, pois nunca tinham sidos usados.A impulsionava a ouvir outras histórias e a experimentar contar as histórias que ali nascia, a menina pela primeira vez era provocada a criar suas proprias narrativas.

Num dia, sem que sua mãe pudesse a advertir, a voz a conduziu até a montanha próxima ao mar. Sem perceber que ali estava, e encantada com o novo mundo que se mostrava a sua frente, quando percebera, o vulcão, aquele que sabia que jamais poderia conhecer, começara a dar indícios de vida. A erupção acontecerá exatamente da forma que ouvira nas histórias e sem acreditar, protagonizava junto com aquele que escolherá para ser livre. Aquele que era um misto de vida e morte.Aquele adormecia a menina e fazia despertar a mulher.Protagonizava com ele o despertar do vulcão. Nesse momento, estava ali: o medo da menina em seu conflito mulher, seu amor amaldiçoado pelas lavas do vulcão e uma dor por deixar de ser a filha que fora até então. Ela chorou profundamente por vários dias e várias noites, numa vigília intermitente do vulcão.Sem lugar para voltar, num incômodo nunca vivido.Da mistura de suas lágrimas, da chuva de raios e águas quentes, e das lavas do vulcão, a mulher deu a luz a uma pedra vulcânica. Pedra vulcânica que nascerá na terra árida ressecada.

Essa pedra era eu.
Que ficara ali, por algum tempo, seguindo o curso de sua mãe na caverna.Pedra impermeável, que não se deixava molhar, pedra imutavel, que não saia do lugar, pedra como sua vó-caverna. Avó que já dava indícios de cansaço ao ofício em preservar.E permitia contar as suas dores e alegrias,suas histórias e causos, a atenta menina pedra, alimentando-a com águas que nasciam tardiamente da fonte de sua caverna.A avó se dava conta da ineficácia da rigidez que até então tivera. Sua condição de caverna não controlou o fluxo da vida,não preservou aquela que mais amava, e não determinou os caminhos que achava que um dia poderia planejar.Ser rocha não garantia absolutamente nada.

E aos poucos permitia-se transbordar timidamente água da fonte de caverna ao narrar a menina suas histórias da infância na roça, as rezas de sua mãe, a vinda sozinha para o rio, o namoro em frente a praia do Russel , a vida movimentada da família. Era água que sorria para pedra.Não precisava acertar, só ser.E naquele momento aquele ser era tudo que a menina tinha.E era a única água que penetrava a menina, e a mudava, e a alimentava, numa irrigação intra-ósseo. O afeto era por ouvir. Por muito tempo a menina acreditou que sua cumplicidade com a avó, era a semelhança da matéria rochosa. Mas não.Sua cumplicidade se dava pelo encontro no tempo da transformação. Ambas eram cúmplices no exercício de transformar-se. Processo de caverna que vira fonte. E pedra que vira água.

Água-marinha, depois água do mar,água do mar do vulcão. E mesmo depois, sem a parceria da avó, a menina firmava-se água. Água quente das lavas do vulcão.Água que busca brechas.Água das profundezas do nós. Água que tenta recontar a história daquele lugar e de outros.Água que tenta contar a historia de si.Água nascida na terra seca.Água feita de afetos dos encontros daqui e porvir.Água que flui. Água que tenta mas não consegue fazer sua mãe florescer.Água que irriga o mundo, mas não irrigava partes rochosas de si pertencentes ao passado filha.Água que tenta irrigar a mãe.Água que não consegue irrigar a mãe. Água que não consegue tocar a mãe. Exceto em momentos, que esta, imersa nas memórias de dor , volta ao entorno do vulcão, senta e chora profundamente.

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