terça-feira, 15 de setembro de 2020

Reexistir

 Sua palavra era resistência.

Seguia intuitivamente essa direção, era preciso resistir a miséria, a dor, ao racismo, a gordofobia, ao preconceito, as instituições, ao sistema do capital, ao julgamento dos outros, ao julgamento de si, o caminho, a morte e a vida.Resisitir era sinônimo de dignidade. E dignidade era o nome daquilo que foi construído na busca pelo lugar de ser. Na busca utópica de não precisar ser além do que se é. Mas o que se era afinal?
Era tudo aquilo que sabia ser e tudo aquilo que buscava descobrir. E sua busca era intensa,era uma inquietação na verdade da essência. Era experiência na linguagem da troca. Era alquimia interna e externa. Membrana dos mundos de dentro e de fora. A sobrevivência a solicitava inteira, mas tinha momentos em que se via em pedaços. Fragmentos na tentativa de diluir afetos, juntos somos mais fortes mas fragmentados somos muitos. Muitos por todos os cantos das habitações de si. Filha, esposa, mãe, professora, artista, conselheira, poeta, narradora, amante, amiga, historiadora. Algoz de si na permanência de seu relicário de redenção.Era preciso entender o percurso do nós. É preciso entender o percurso da dança da vida. E cantava e dançava e sorria nas brechas do eu. Eu que ansiava por respostas. Eu que vivia por construir perguntas.Das perguntas que gritavam mais alto era dificil escolher uma.Uma que desatasse o nó mestre de sua vida.Que respondesse a pergunta chave de seu enigma.Que desdobrasse como flores de lótus o peso de existir.Porque existir tem um peso, um peso para além do corpo, da matéria, dos ossos. Um peso que atravessa as memórias, pelas nuvens esquecidas do amadurecimento e se reencontram nas narrativas do silêncio, revivendo na pele a inconsciencia de ser.
E era. Era tudo que desconhecia. Era luz e sombra na criança que não abandonara. Justo ela que fora abandonada inúmeras vezes, não poderia ser abandonada por si. Era ser cruel demais, e não sabia lidar com esses sentimentos.A criança seguia seu caminho, ora solitário, ora acompanhada, ora alimentada, ora esquecida. Mas nunca ultrapassada.Ela estava ali, resistindo a tudo, num horizonte de espera, num passado atemporal, no fragmento do nós, no silêncio da sombra, na dor da existência, no perdão que tarda. Ali, onde nunca saíra, obediente em sua essência de subverter o tempo. Seu tempo se estendia a espera de outro tempo. E enquanto esperava se fazia presente. Era agente no percurso desde sempre, era protagonista de relações,era quem se recolhia e não tinha hora de voltar. Era amiga do sol e da sombra juiz. Era no fundo talvez infeliz. Sua morada, ora fragmentada ora inteira, não se fazia encaixar. Seu tempo ja tinha passado e mesmo assim resistia na luta pelo controle em não aceitar. Dialogava como adulta e as vezes convencia na arte de ocultar. Mas era a criança ferida que só queria salvar. Salvar a si na resistência do tempo que escorre pelos dedos, seus pés gordinhos insistiam em fincar nas terras de si e dali não sair do lugar.
O que falar pra essa pequena que não para de chorar?
Escuta minha filha, vem cá. É preciso ouvir o tempo e com ele se encontrar.
Não adianta, fazer birra, se esgotar. Sofrer, bater pernas e chorar. A vida sempre vai passar, o tempo não podemos carregar: esperando pelo abraço na hora certa, pelo aconchego, pelo aplauso, pela palavra, pela comunhão, pela proteção, pela escuta, pela luz, pela exclusividade, pela intensidade da presenca compartilhada no transbordamento do nós. Não. Não precisa resistir. Tardar por reexistir.Não é tempo de fingir que ainda espera por um passado de partilha e comunhão.Não, irmão, o que nos resta é só a gratidão. De olhar a existência do sim e do não, no percurso que nos faz aquecer o coração. Coração de carne e canção.Na poesia de continuarmos mãos com mãos. Na alquimia de integrar, olhar pra você e falar; Vem, no caminho eu te mostro o instante.

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